Uma das grandes surpresas do ano!
É cada vez mais difícil cruzarmo-nos com restaurantes que nos surpreendam, mas que nos surpreendam a sério. Estamos a falar especialmente de restaurantes mais sofisticados, ou se quiserem, de cozinha de autor. E essa dificuldade tem a ver com a promessa mais ou menos generalizada de todos eles: a re-invenção da cozinha portuguesa. Que promete muito mas que depois acaba quase invariavelmente no mesmo resultado: pratos cheios de técnica mas sem alma nenhuma. Sem aquele toque de portugalidade, sem nos despertarem memórias, e muitos sem sentido nenhum. Infelizmente isto acontece cada vez mais.
E é por isso que quando somos confrontados com uma experiência completamente oposta, ficamos mais do que surpreendidos… ficamos rendidos. Que foi exactamente o que aconteceu no Quorum, onde fomos jantar no final de Dezembro, mas ainda a tempo de fazer o restaurante entrar no nosso top dos Melhores Restaurantes de 2018. E para os primeiros lugares!
O Quorum fica na Rua do Alecrim, no espaço que já foi o Storik e depois disso outras coisas, mas nada muito fixo. A zona até parece aliciante, mas é uma rua de passagem ou para o Chiado/Bairro Alto ou para o Cais do Sodré, por isso a maioria das pessoas não liga ao que por ali há. O que no caso do Quorum é realmente uma pena. Para elas!
O espaço tem uma arquitectura estranha, porque se divide numa sala inferior que é quase uma cave e numa sala que fica por cima, tipo mezzanine. Neste momento funciona apenas a sala de baixo, e o mood do restaurante é um misto de vegetação e cortiça. Inspirações portuguesas, tudo bem, mas isso, aliado ao mobiliário informal (e as cadeiras desconfortáveis) e iluminação pouco seccionada são os aspectos menos positivos do Quorum. Não são negativos, mas quando melhorados, o Quorum vai ser ainda mais maravilhoso!
À frente do Quorum está agora o Chef Tiago Emanuel Santos, e a base da sua cozinha é efectivamente a gastronomia tradicional portuguesa. Aliás, a carta tem uma pequena introdução onde podemos ler que as suas criações resultam de viagens feitas por todo o País à procura de receitas antigas, de produtos de pequenos produtores, aqui trabalhados com técnicas modernas mas sem nunca perder o sabor a tradição. Como escrevemos em cima, outros restaurantes prometem isso mesmo, mas são poucos os que o cumprem como acontece no Quorum. Porque aqui temos os ingredientes bem tratados (e a maioria deles muito simples, sem extravagâncias), bem apresentados, e com sabores que nos fazem viajar pelas várias regiões do país.
Mas vamos então começar a nossa viagem, neste caso através do Menu “Viagem a Portugal”, com 7 momentos.
O couvert traz-nos dois tipos de pão feitos no restaurante, um pão de trigo e outro de centeio, acompanhados de uma manteiga de vaca dos Açores e outra de cabra. Honestamente, o menos interessante de todo o jantar, por ser o mais normal. Destaca-se o outro elemento que termina o couvert: o azeite da avó Angélica, também de produção (quase) caseira, tem uma acidez perfeita e desaparece muito mais depressa que qualquer uma das manteigas.
Mas a partir daqui as coisas mudam de figura, e aquilo que poderia continuar a ser um jantar normal torna-se numa experiência fora de série! Porque à medida que cada prato vai chegando, é-nos contada uma história que lhe serve de enquadramento, sobre o que o inspirou, e isso envolve-nos ainda antes de o provar. E torna a prova ainda mais intensa.
O primeiro momento são Snacks cujos nomes reconhecemos, mas com uma apresentação completamente diferente. Temos uma Patanisca (de bacalhau), um Pão com Chouriço e um Polvo Seco, mas se nenhum se assemelha ao que estamos habituados a comer nas tascas e feiras por esse país fora, a nível de sabor não podia estar mais próximo! Independentemente das técnicas usadas ou das texturas diferentes, cada um destes snacks tem exactamente o sabor que a sua verão original deve ter. Sabe a tradição, sabe a Portugal. Fantástico!
Num segundo momento, outra maravilhosa surpresa, e um prato que também entra facilmente para a lista dos melhores que provámos este ano: Ovos de Tomatada. Parece uma gema de ovo, mas quando nos é servido dizem-nos que que mais de 70% do que vemos no prato é tomate. E isso é algo que sentimos mesmo quando quebramos esta pequena “gema”, o sabor intenso do tomate misturado com o toque de ovo, a lembrar o tradicional prato do sul do País. Por nós comíamos mais 3 destes, mas ainda estava muito mais para vir! 😉
Seguindo em frente, para os Raviolis de Gamba Rosa do Algarve. Novamente com uma apresentação fora de série e com o caldo a ser servido na mesa à nossa frente, caldo rico e intenso, a funcionar na perfeição com os raviolis. Um prato que também lembra o Algarve, o mar, a costa. Mas também lembra a sopa da avó, numa noite fria de Inverno.
Continuamos no mar, com a Brama com Tubérculos. A brama (que muita gente conhece como chaputa) é daqueles peixes muito esquecidos porque são classificados como menos nobres, mas era muito utilizado na gastronomia portuguesa na primeira metade do século passado. Histórias à parte, o prato que nos servem volta a surpreender pelos sabores intensos! O peixe é delicioso e a pele está crocante, e é coberto com um molho espesso feito quase só de cebola – o que pode até parecer estranho, mas nada disso. O resto do prato é composto por vários purés: batata, batata doce, abóbora e nabo. Produtos que não parece ajustar-se a este tipo de restaurante mais sofisticado, mas que tornam o Quorum num caso único exactamente por causa disso. Porque se conseguem fazer maravilhas com as coisas mais simples.
Faço aqui uma pequena pausa para falar do serviço, outro ponto a destacar no Quorum. A equipa de sala tem um conhecimento extremos daquilo que nos está a servir, tanto a nível dos pratos como no campo dos vinhos – sugerimos que façam o pairing de vinhos com o menu de degustação, porque é, por si só, uma experiência fora do comum. À medida que os pratos vão chegando, mais do que apenas uma descrição, é sempre feito um enquadramento que nos transporta para a sua origem, que nos começa logo a suscitar sabores… que depois vão ser comprovados quando começamos a comer.
O quinto momento deste menu de degustação é o primeiro de carne, e outro prato maravilhoso. O Arroz de Salreu com Coelho selvagem e Caldo de Cogumelos, que nos leva até ao Alentejo, pode até parecer algo arriscado, já que nem toda a gente gosta do bicho. Mas é impossível não gostar deste prato, porque o arroz e o coelho fundem-se maravilhosamente e são muito bem complementados pelo puré de cogumelos que termina o prato. Comida de campo, que nos faz sentir exactamente aí. Fenomenal!
Correndo o risco de ficar sem adjectivos, o momento seguinte é outro prato extraordinário! Ainda no registo alentejano temos a Barriga de Porco acompanhada de um Cozido de Grão, sobre um caldo de pé de vaca e cabeça de porco. A descrição até pode assustar, mas este é outro daqueles pratos de conforto de certas regiões do país que fazem parte da nossa cultura gastronómica, e que no Quorum são recuperados com mestria e técnicas apuradas. A barriga de porco está fantástica, o caldo é excelente, o grão traz textura extra ao prato… enfim, sem palavras!
Se fizeram bem as contas, nesta altura iríamos para o último momento dos 7. Mas nunca é bem assim… 😉 O momento seguinte pode ser considerado a primeira sobremesa, mas também se torna uma espécie de tira gosto. De qualquer forma, a Laranja dos Pobres é toda uma experiência por si só! Uma esfera que simula uma laranja mas tem a acidez do limão, com vários apontamentos de gel à volta e também pedaços de suspiro…
… conjunto que depois é regado com um fio de azeite, que vai efectivamente ajudar a ligar os elementos e a tornar esta sobremesa em algo ainda mais fora de série. Há toda uma história que nos é contada durante este processo, que nos envolve na sobremesa ainda mais. Como tudo no Quorum, a harmonia dos sabores e das histórias que os justificam é perfeita.
E terminamos a viagem que tínhamos começado quase duas horas antes com o tal último momento, ou a segunda sobremesa: Tarte de Maçã com Gelado de Maçã e Nabiças, acompanhado por Enxovalhada (uma espécie de bolo alentejano, muito frequente nas casas mais humildes, aqui transportado para um registo fine dinning). Tudo faz sentido nesta sobremesa, com destaque para o fantástico gelado onde conseguimos realmente sentir os dois sabores predominantes. Como, aliás, foi apanágio desta refeição no Quorum: o sabor existe e deve ser o principal de cada prato, por mais bonita que seja a apresentação.
Para o final fica o café e uma pequena surpresa. E mesmo que este momento já não faça parte do conjunto de momentos incluídos no menu de degustação, é muito diferente do habitual. O café é feito na mesa, num Balão de Café, como se fazia “antigamente”. O processo leva o seu tempo, mas é tão cénico que as outras mesas ficam inevitavelmente a ver (e acabam por pedir o mesmo). O lote do café é excelente, suave e aromático, e nesse momento ainda nos trazem uma pequena fatia de Pão de Ló, mas com a textura quase de um semi-frio. Mais uma “brincadeira” da cozinha, onde o sabor tradicional se alia a técnicas mais modernas. E um final perfeito para um jantar perfeito!
Aquilo que muitos restaurantes “sofisticados” (alguns deles “estrelados”) prometem, tentam e falham em fazer com a re-interpretação da cozinha portuguesa, o Quorum faz sem esforço nenhum. Pelo menos esforço aparente. O Chef Tiago Emanuel Santos consegue transportar-nos para onde nos quer levar, usando ingredientes simples, alguns até desvalorizados. E quando os sabores dos pratos nos fazem viajar, então é sinal que quem está à frente de um restaurante sabe bem o que faz.
O jantar no Quorum foi uma das melhores surpresas que tivemos em 2018, numa cidade onde o panorama gastronómico é cada vez mais previsível e pré-formatado, pelo menos no que diz respeito à alta cozinha. Se o objectivo é chegar à Estrela Michelin num curto espaço de tempo? Não sabemos, mas também não nos parece que o Quorum viva em torno disso. Vive sim em torno de proporcionar aos seus clientes uma experiência. Única, Genuína, Fantástica.
Preço Médio: 80€ pessoa (menu de degustação 7 momentos, com vinho)
Informações & Contactos:
Rua do Alecrim, 30 | 1200-018 Lisboa | 21 604 03 75