Um boteco muito à frente!
Sempre achei engraçado que, até há poucos anos atrás, a maior representatividade de restaurantes brasileiros que tínhamos um pouco por todo o país eram rodízios de carne. Cadeias como o Chimarrão fizeram muitas gerações de jovens portugueses acreditar que aquilo que se comia no Brasil era picanha, maminha e outros cortes de carne em espeto. Mas depois foram começando a abrir novos restaurantes brasileiros que nos mostraram que havia muito mais para além disso. No fundo, não é muito diferente do que acontece com a grande maioria das gastronomias quando são “exportadas” para outros países: acabamos por receber só algumas coisas, e geralmente aquelas que são mais fáceis de… assimilar.
Felizmente, a globalização deu-nos a oportunidade de haver esta migração gastronómica mais frequente e mais genuína. As pessoas viajam mais, por isso é normal que tragam para novos países aquilo que faziam em casa. E mesmo nós acabamos por viajar e conhecer estas novas culturas, novos pratos e novos sabores, e acabamos por fazer uma espécie de “apropriação gastronómica”, resultante de várias inspirações. E é isso mesmo que o Chef Kiko Martins tem feito nos seus vários restaurantes em Lisboa… o último dos quais é este O Boteco.
O Boteco, como dá para adivinhar pelo nome, é a interpretação do Chef Kiko Martins de um boteco brasileiro. Grande apaixonado pelas viagens pelo Mundo e ele próprio nascido no Rio de Janeiro, aqui estamos num registo que inclui referências principalmente brasileiras mas também de outros países da América do Sul. E se há uma coisa que sentimos assim que entramos no restaurante é isso mesmo, as cores vibrantes da América do Sul, a vegetação, o ambiente. É um boteco de luxo, se quisermos, porque a decoração tem tanto de étnico como de requintado. Isto é algo a que o Chef já nos habituou nos seus outros restaurantes em Lisboa, esta fusão a nível de decoração e mobiliário.
Nenhuma destas fotografias representa bem alguns dos pormenores do Boteco, começando pelo enorme candeeiro feito de garrafas, passando depois pelo balcão e móvel do bar, que nos remete para um qualquer bar de uma América do Sul colonialista, e acabando no enorme papagaio que ocupa a parede de fundo do restaurante, da autoria do Bordallo II, que nos prende a atenção e até tem umas semelhanças ao Cristo Redentor, a olhar por nós durante a refeição.
E a refeição num boteco brasileiro começa como? Com caipirinhas, claro! Com vários sabores disponíveis, são um bom início de refeição e acompanham-nos enquanto olhamos para a carta. Temos algumas entradas, mais no registo de petiscos, depois uns poucos pratos clássicos e ainda variações de picanha. Mas comecemos, como sempre… pelo começo 😉
O couvert traz-nos um pão de centeio em tosta e uns pães de queijo, para acompanhar duas manteigas (manteiga de alho e dip de salsicha toscana) e queijo coalho com orégãos. Tudo com bons sabores, especialmente o dip de salsicha toscana, que é também o mais surpreendente.
Depois, um miminho do Chef: um pequeno Croquete de Feijoada, muito bem recheado e saboroso. Que abre o apetite para os Dadinhos de Tapioca, acompanhados de Goiabada, excelente e viciantes, com um acentuado toque de parmesão e uma goiabada semi picante. Muito bom começo!
Depois, e como é habitual nos restaurantes do Chef Kiko, há sempre alguma portugalidade misturada nos pratos. Por exemplo, n’O Boteco temos a Salada de Polvo, aqui servida com tapioca e um gelado de pimentos, que mesmo com todas estas invenções, quando misturada, sabe a uma salada de polvo tradicional. E isso é que interessa!
O Ceviche Amazónico é um prato que nos transporta menos para o Brasil e mais para o Peru, mas a verdade é que aquele continente tem uma mistura grande de influências (e, além disso, não é de estranhar que o Chef Kiko traga algumas referências de um dos seus restaurantes com mais sucesso, A Cevicheria, sobre a qual podem ler aqui). Este ceviche tem camarão Black Tiger, Corvina, Coco, Banana e Açaí, ou seja, muitos ingredientes brasileiros, num ceviche onde on “leche de tigre” é menos ácido e intenso do que esperávamos, porque o coco acaba por lhe dar um toque doce. É assim um misto de influências e também de sabores.
Depois, começamos a entrar nos pratos quentes e mais reconfortantes, até porque a comida brasileira também os tem. E bons! Nós provámos o Bobó de Camarão com Lombo de Bacalhau, acompanhado do Arroz de Alho. Nada a apontar ao molho, nada mesmo, com o leite de coco a dar-lhe a doçura necessária e uma óptima textura, e o lombo de bacalhau a lascar na perfeição.
Finalmente, a rainha da noite! Sim, parece estranho ter começado por falar mal do Chimarrão e agora vangloriar a picanha. Mas não tem nada a ver… A Picanha não deixa de ser um dos cortes de eleição brasileiros, e aquilo que o Chef Kiko faz n’O Boteco é dar-lhe o destaque merecido! Há 6 formas de servir a Picanha mas a que tem mais saída é a Picanha no Espeto. Que, como não podia deixar de ser, é picanha… servida num espeto. Pedaços pequenos de carne vêm para a mesa num espeto enorme, para irmos comendo ao nosso ritmo (até porque este prato é servido à descrição, ou seja, podemos pedir as vezes que quisermos). A carne em si é fantástica, saborosa, suculenta, e chega à mesa grelhada no ponto certo, acompanhada de uma farofa com presunto e bacon. E como se não bastasse a qualidade da carne, o acompanhamento aqui foi o Arroz Baião de Dois, que é um arroz com carnes, feijão e muitas outras coisas, uma mistura de sabores muito boa e rica. Uma combinação perfeita.
Nas sobremesas, continuamos no registo dos pratos brasileiros mas com um twist moderno e um pouco mais internacional. O Quindim do Boteco é com Tapioca de Coco e Gel de Maracujá, o que lhe dá várias texturas e sabores muito exóticos. E o Brigadeiro e Avelã também é muito bom, com um toque de leite condensado que resulta bem em qualquer sobremesa.
O Boteco do Chef Kiko é uma das boas reaberturas do ano, e ainda bem, porque Lisboa precisa de mais restaurantes que nos mostrem a gastronomia brasileira para além dos cortes de carne. E aquilo que aqui acontece é uma fusão muito interessante de referências, sabores, texturas, ingredientes um pouco de toda a América do Sul, que nos transporta numa verdadeira viagem. Uma viagem que nos entra pelos olhos dentro e depois apela a todos os nossos sentidos.
No fundo, é um pequeno pedaço do Brasil que ocupa o número 37 da Praça Luís de Camões, mesmo no centro de Lisboa. Um Brasil com classe, sofisticado, mas com alma jovem e alguma “ginga”. Um Brasil que serve samba e picanha, mas de uma forma moderna e estilosa.
Preço Médio: 40€ pessoa (com caipirinha)
Informações & Contactos:
Praça Luís de Camões, 37 | 1200-243 Lisboa | 21 134 80 71